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Explorar o desenho através do uso de ferramentas alternativas: assumir os erros para celebrar os acertos.

por Luciano Feijão

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“A verdade é que, com o fracasso, podemos entender o nosso desenvolvimento. As pessoas começam a melhorar quando fracassam, avançam a partir do fracasso, descobrem algo inesperado baseado no resultado do fracasso, fracassam novamente, descobrem outra coisa, fracassam novamente, descobrem outra coisa.
Acredito que Picasso é o exemplo mais útil que você pode ter, porque sempre que ele aprendia a fazer algo, o abandonava, e, dentro de suas perspectivas
e de seu desenvolvimento como artista, os resultados foram extraordinários.”

Milton Glaser

 

Pensar a prática do desenho a partir de novos repertórios, metodologias e materiais, amplia os horizontes da criação e contribuem para o surgimento de outros modos de existência sobre os agentes criadores. Uma formação em desenho com materiais alternativos exige, de seus participantes, uma certa disponibilidade aos deslocamentos provocados diante das mudanças, por vezes radicais, nos processos habituais de construção de imagem.
 

Caminhando agora na direção de experiências mais fortuitas, o desenho é pautado nos desvios e acidentes processuais que acabam se tornando o fundamento principal desse “novo” método de abordagem estético. Se compreendemos o desenho dentro das atribuições que cercam sua própria linguagem, e, ao mesmo tempo, pensarmos o desenho também como um poderoso dispositivo de análise, fica a pergunta: que “novo” método seria esse e como ele se torna tão determinante na desconstrução e reconfiguração da imagem, reposicionando desenhistas dentro de um novo estado físico e emocional?

O ato de desenhar nos convoca a formular e resolver problemas, a princípio de ordem visual. Simultaneamente, desenhar também ajuda a direcionar nossa energia para possíveis soluções que desloquem a própria noção de visualidade, já que, muitas vezes, essa percepção se torna uma prisão, na medida em que, de maneira equivocada, almeja uma configuração idealizada do mundo enquanto objetivo final a ser alcançado.

Desenhar usando materiais alternativos como parte constitutiva de um processo de formação contribui para o surgimento de dois pressupostos: a formulação de um problema e qual seria as possibilidades de solução.

Quando desenhamos com materiais alternativos (como borracha, pente de cabelo, esponja de lavar louça e gilete), as indagações surgem antes mesmo da primeira manifestação gráfica no papel. Como ferramentas tão banais podem ser ressignificadas e se tornarem notáveis, baseadas em suas próprias estruturas ordinárias?
Uma resposta para essa pergunta se encontra no primeiro deslocamento, de muitos, que imediatamente estabelece uma descentralização na importância dos materiais nobres (lápis, pincel, bico de pena, etc), compreendidos sempre como indispensáveis para a realização de qualquer atividade relacionada ao desenho. Isso significa que, de um ponto de vista mais acessível e democrático, podemos construir e adaptar novas ferramentas, alterando suas funções básicas, enquanto objetos banais do nosso cotidiano, para ferramentas que agora também carregam algum grau de nobreza.

Essa reconfiguração sobre uma certa definição de nobreza – lugar onde, em muitos momentos, o conhecimento adquirido pode separar e alienar o indivíduo de sua própria natureza criadora –, nos permite olhar nesse momento para uma simples borracha, pente de cabelo ou esponja de lavar louça, e compreender a potência que se manifesta no uso desses instrumentos triviais.

Alinhado às abordagens e metodologias menos familiares e que podem levar cada desenhista a enxergar o risco inerente, ao mesmo tempo pungente, de seu processo de criação, esse potencial surge na medida em que carrega o desafio de tentar desvendar novos problemas de ordem estilística. O objetivo parece ser claro, realocar a linguagem do desenho, retirando-a de um certo enclausuramento conceitual e estético, possibilitando, dessa maneira, uma maior acessibilidade entre pessoas de diferentes idades e níveis de conhecimento.

Desenhar com materiais alternativos pressupõe incorporar erros, acasos, desvios, surpresas, dúvidas e, até mesmo, administrar angústias. É um cabo de guerra entre, aquilo que você não consegue controlar de imediato, no momento em que surgem as primeiras manifestações gráficas no papel, contra todo o dispêndio criativo e técnico extravasado para que não nos tornemos reféns das ferramentas.

Tudo isso contribui para que o desenho com materiais alternativos, executado por qualquer pessoa, seja compreendido como um procedimento que não está vinculado a uma representação fiel da realidade, tal qual a fotografia, mas, principalmente, está unido a uma disponibilidade em enfrentar, no papel em branco, os desafios convocados por essas inquietações misteriosas.

 

O curso Estratégias no Desenho ajuda a desobstruir um conhecimento imanente que habita cada participante, mas que, aos poucos, precisa desmantelar este duelo mental obscuro entre expectativa versus realidade, entre aquilo que se contempla e o que é possível concretizar de fato.

Produzir com materiais alternativos nos permite habitar um lugar onde as surpresas nos processos de criação são justamente os pilares que sustentam essa construção. Quanto mais “estranha” é a ferramenta, maior é a satisfação em ver o resultado desse investimento, ocupando agora um lugar diferente do que se acostumou, ou seja, o ato de desenhar acaba manifestando mudanças significativas na dinâmica e no olhar de quem desenha.

Diante dos desafios impostos pelos materiais alternativos, somente a falta de controle e a repetição são capazes de afastar desenhistas da falsa sensação de segurança a que estão habituados. Esse afastamento estabelece um primeiro exercício de liberdade, já que, até então, o medo do estranhamento, do inesperado e do erro causa mais repulsa do que empoderamento. A motivação é apostar na mudança de um fundamento: quanto mais estranho mais potente o desenho se tornará.

Ao longo do processo, é quase inevitável o surgimento desses sentimentos tão turbulentos, e é justamente por isso que devemos inverter a lógica das sensações, fazendo com que essas adversidades, e tudo o que vem a reboque, ajude a fazer com que a prática do desenho seja, substancialmente, uma prática de liberdade. Assumir os erros passa a ser um aliado e uma recompensa, para que deixemos de idealizar o desenho dentro do nossos desejos inalcançáveis, e, diante disso, nos disponibilizarmos aos acontecimentos surpreendentes que irão surgir ao longo de cada etapa alcançada.

Nossas vidas são acúmulos de experiências. Todas essas experiências, em algum momento, nos proporcionam a abertura de determinadas frestas que, se atravessadas, nos levam a novos caminhos para que outras vidas possam se manifestar no decorrer dos acontecimentos. O desenho (enquanto linguagem, modo de expressão, capacidade formativa e prática deliberada) é uma dessas proposições que nos possibilita outras vidas, mas é, ao mesmo tempo, um campo de batalha onde se clarifica, mergulhado no próprio campo, uma série de desarranjos, inseguranças, incertezas e limitações. Tensões essas que fazem parte da vida (e do desenho) de qualquer um, de qualquer uma.

O desenho, enquanto tradução gráfica das nossas lutas cotidianas, alinha-se também à nossa formação subjetiva. Não se trata de uma questão identitária, de se reconhecer desenhista por possuir determinadas habilidades, mas sim fazer nascer um corpo-desenho, este que funde produção de subjetividade às próprias determinações do ofício, podendo, enfim, assumir o desenho como parte da vida.

No desenho, não existe certo e errado, bonito e feio, valores dicotômicos, existem sim as convicções que desenhistas afirmam dentro dos universos que acabaram de criar. O desenho precisa do erro para evidenciar no papel a presença viva de quem o fez. Ao desenhar, vamos transformar o erro em nossas impressões digitais, para nos lembrar que o desenho também somos nós. Vamos fazer do ato de desenhar um espaço também de reflexão, não somente de exibição.

“Podemos não saber o que queremos fazer,
mas nós certamente sabemos o que não queremos fazer.
Então você constrói uma série de limitações auto-impostas,
que vão garantir que você não faça o que não quer mais fazer,
e isso força a abertura de uma porta, e, se você estiver afim de cruzar
a porta e seguir onde for te levar, você terá programado uma mudança.”

Chuck Close

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