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Entrevista com Ellen Duthie

Por Dani Gutfreund

Para Ellen Duthie, filosofia é rebeldia. É questionar certezas, dadas ou construídas, a partir da nossa experiência. Filosofia é jogo e, portanto, coisa séria: para pensar filosoficamente, precisamos ter certeza de que dispomos de todas as peças, a fim de descobrir como e em que momento elas se encaixam, se podem ser colocadas em diferentes posições ou se devem ser guardadas para outra situação. Filosofia é também busca e fonte de sentido diante da estranheza da vida, dos mistérios do mundo e das contradições que nos compõem. Wonder Ponder é isso: deixar que o espanto e o maravilhamento abram o caminho para a reflexão. Idealizado por Ellen e desenvolvido junto à ilustradora Daniela Martagón, Wonder Ponder é um projeto de Filosofia visual para crianças, que deu origem a uma série de livros-jogos, sendo Mundo Cruel ‒ lançado no Brasil pela Boitatá em 2017 ‒ o primeiro volume. Nesta entrevista, Ellen conta um pouco mais sobre o projeto e sobre a sua trajetória pelos mundos da filosofia e da literatura, suas maiores paixões.

 

Ellen Duthie é professora, escritora e tradutora. Mestre em filosofia pela Universidade de Edimburgo. Criou o projeto Wonder Ponder, de filosofia visual para crianças. Saiba mais em seus blogs: los leemos así, filosofia de cuento, filosofia a la de três e el blog de Wonder Ponder.

“A filosofia nos prepara para estar no mundo de uma forma ativa, indagadora e responsável”

Wonder Ponder

LUGAR DE LER: Surpreender-se, perguntar-se e ponderar (Wonder Ponder) em casa, na escola, em qualquer lugar e sempre. Gosto de pensar que toda conversa começa a partir de uma pergunta, explícita ou não, a partir de um convite à interlocução. Assim, parti de algumas perguntas iniciais, explorando um pouco o terreno, para depois me deixar mais à mostra. Sinta-se à vontade para me interromper a qualquer momento, colocando seus pensamentos em meio aos meus. O que é uma pergunta filosófica?

ELLEN DUTHIE: Essa é uma daquelas perguntas que nos deixam sem saber o que dizer. Podemos até respondê-la de forma fácil, em algumas linhas. Para isso, uma opção é dar um enfoque temático: as perguntas filosóficas são aquelas que dizem respeito ao mundo em que vivemos e sobre nosso lugar nesse mundo; respostas que, muitas vezes, referem-se ao sentido, à verdade, ao valor, ao conhecimento e à realidade. Ou podemos ir pelo viés mais difícil, falar sobre o tipo de resposta que solicitam: uma pergunta filosófica é aquela cuja natureza conduz a explorar todas as possíveis respostas no lugar de buscar a resposta correta, entre outras coisas, porque entendemos que para respondê-las não podemos recorrer a um especialista que as resolva e dê o assunto por encerrado. São perguntas cujas respostas estariam sempre abertas a discordâncias fundamentadas. Porém, me aventuro a dizer que nenhuma das respostas, nem sequer todas juntas, permitiriam que você, a perguntadora de “O que é uma pergunta filosófica?”, se satisfizesse. É que muitas das perguntas com aspecto filosófico não são nem um pouco filosóficas e, ao contrário, muitas com um ar totalmente inocente são puramente filosóficas. Mais do que pensar em perguntas filosóficas e não filosóficas, às vezes é interessante falar de perguntas realizadas com atitude ou olhar filosófico, que nascem de um interesse pela exploração filosófica.

Vou lhe contar sobre um jogo que costumo fazer com crianças e adultos. Preparo um pote cheio de papéis, e em cada um há uma pergunta: há questões científicas, filosóficas e outras que não são nada além de bobagens, mas servem para dar risada. Ao tirar uma pergunta do pote e lê-la em voz alta, devemos dizer se é “filosofia, ciência ou bobagem” e colocá-la no montinho correspondente. É útil para ir desenvolvendo uma ideia do que é uma pergunta filosófica e do que não é tão filosófico assim. Uma pergunta filosófica pode ser mais fácil de reconhecer do que de definir.

LUGAR DE LER: Por que e para que falar de filosofia com as crianças?

ELLEN DUTHIE: Desde a mais tenra idade, os seres humanos perguntam e refletem sobre o mundo; e, se nos for permitido (quando nos consideram como interlocutores e não nos interrompem nem dizem que agora não é o momento), muitas vezes o fazemos de forma persistente e profunda. Muitas das perguntas e preocupações das pessoas pequenas têm um componente filosófico. Reconhecer suas perguntas individuais como questões que compartilhamos e necessitamos explorar juntos é importante como parte de um reconhecimento de nossa humanidade comum e de sua condição de interlocutores válidos. Um dos lugares naturais a partir do qual se realiza tal reconhecimento é a filosofia (entendida como atividade).

Esse seria um dos porquês. Quanto ao para quê, haveria vários, porém é uma necessidade de estabelecer os espaços e tempos de parar para olhar e parar para pensar (crianças e adultos!). A filosofia convida a se perguntar sobre o mundo e sobre si mesmo com atitude exigente, a colocar-se as questões com rigor, a partir de um ponto de vista e de seu contrário, pensar em respostas e ver se elas se sustentam, habituar-se a exigir coerência nos argumentos dos outros e nos nossos. Finalmente, a filosofia nos “prepara” para estar no mundo de uma forma ativa, indagadora e responsável. Falar de filosofia com as crianças para isso, por exemplo, o que não é pouco.

LUGAR DE LER: Por que filosofia visual?

ELLEN DUTHIE: Queríamos criar um estímulo que fosse rápido e também adequado a pré-leitores – no momento em que surgiu, trabalhávamos com crianças de 4 anos. Por isso o visual. Queríamos que fosse o mais imediato possível, no sentido literal de “não mediado”; ou seja, nos interessava intervir menos no processo de questionamento, julgamento e reflexão inicial dos leitores. É muito interessante observar o que ocorre quando se permite que o leitor construa tudo na sua mente em vez disso lhe ser oferecido mediante as palavras das autoras. É diferente quando o leitor precisa construir e colocar em palavras o que uma imagem lhe faz pensar do que quando ele apenas reage frente às palavras de um autor.

LUGAR DE LER: Como podemos problematizar pensamentos mecânicos e passar a entender as coisas que são, como são e por que são?

ELLEN DUTHIE: Um dos modos é aprender e habituar-se a perguntar, convertendo-se em perguntadores especialistas. Assim, quando nos deparamos com uma pergunta realizada de certo ângulo, queremos ver imediatamente o aspecto dessa pergunta sob outra perspectiva. Queremos exigir de nós mesmos e dos demais que se vá além do mecânico, que removam as camadas. Os pensamentos mecânicos são rápidos em aparecer – mas, são facilmente desestabilizados, basta tirar-lhes algumas lascas. É importante sentar-se e examinar nossos pensamentos mecânicos, analisando em que medida estão fundamentados e em que medida não estão, ou seja, explicitando o exercício de problematização, para depois abrir o caminho para desestabilizar ou mesmo derrubar alguns mecanismos e começar de novo. Com boas perguntas, não há lugar para pensamentos mecânicos. Se somente surgirem pensamentos mecânicos é porque há falhas nas perguntas.

LUGAR DE LER: Ao ler as perguntas, num primeiro momento, tem-se a sensação de que não há saída: sinto como se colocasse tudo em jogo ‒ ações ou situações mais corriqueiras ‒ e dissesse: “pois é, precisa pensar nisso também”. E faz com que passemos a olhar para as coisas com outros olhos. O jogo propicia o pensamento filosófico, faz com que questionemos nossas convicções, crenças, o senso comum, o aceito e constituído. Faz com que mudemos de lugar, experimentemos outros papéis, pensemos como outro, no lugar do outro, a partir do que o outro vê. Além disso, nos obriga a sair do marasmo da aceitação e faz com que queiramos e precisemos entender: a filosofia é uma busca, uma investigação pela origem e sentido das coisas. De onde vem isso que penso, sinto, sou...? E essa aproximação do mundo e de si nos permite um olhar genuíno, e possivelmente mais generoso, para o mundo e cada uma das coisas. Você poderia contar um pouco da sua trajetória, de como chegou a escrever e filosofar com crianças?

ELLEN DUTHIE: Meu interesse pela literatura infantil nunca parou. Isto é, em nenhum momento da minha infância decidi que era grande para a literatura infantil. Quando comecei a ler livros para adultos (o que fiz cedo, por volta dos 11 anos de idade), continuei combinando-os com releituras ou leituras novas de livros infantis – e é assim até hoje. Em um momento determinado, também durante a faculdade, comecei a escrever literatura infantil (romances, poesia, contos curtos, peças de teatro) – nada publicável, mas tudo muito útil como aprendizagem. Ao terminar a licenciatura em Filosofia, uma das primeiras coisas que me dispus a fazer, com a arrogância da juventude, foi escrever uma introdução à filosofia para crianças. Tentei diversos enfoques, mas nenhum me convenceu. O curioso, ao olhar hoje para esses primeiros esforços, é que já era possível enxergar alguns elementos que aparecem no atual projeto de Filosofia visual para crianças do Wonder Ponder. Nos anos seguintes, graças a diversas oportunidades de trabalho com crianças em diferentes contextos, fui experimentando vários enfoques para aproximar a filosofia das crianças também a partir da prática. Comecei a usar a literatura sem pensar muito sobre isso, simplesmente a conexão me pareceu natural. Pouco a pouco, fui desenvolvendo um critério de quais livros funcionavam melhor como detonadores e ganchos para o diálogo, e fui pensando também nos mecanismos que entravam em jogo nas distintas obras literárias que ativavam a reflexão, a pergunta e o questionamento. Comecei a ler outros autores que também falam sobre filosofia com crianças: o norte-americano Matthew Lipman (pioneiro nesse campo, idealizador e fundador do que se conhece como o Programa de Filosofia com Crianças), o francês Oscar Brenifier, o argentino radicado no Brasil Walter Kohan, Karin Murris, entre outros, e a “dialogar” com seus textos na minha própria prática e reflexão. Algo que sempre esteve presente, desde o início da minha trajetória, é a ideia da filosofia como jogo: jogo de construção, mas antes, jogo de desestabilização, capaz de provocar essa sensação de estar sem saída que você menciona. Se não sentir que a pergunta filosófica te deixa sem saída, é porque ela não está bem formulada. Todas fazem exatamente isso! Encurralam. É impossível se libertar delas com facilidade. São persistentes como as moscas. Dizem: “Ei, você! Sim, você”. E, ainda que não acredite, isso vai ficar te cutucando, não pense que vai se livrar tão facilmente.

Wonder Ponder

“Estamos acostumados a uma educação ética e a uma literatura cada vez mais a serviço de uma suposta ‘educação de valores’: no lugar de convidar à reflexão, reproduz-se uma versão moderna dos dez mandamentos ‒ deves ser tolerante, deves ser empático, deves reciclar etc.”

LUGAR DE LER: Você pode contar a história do Wonder Ponder?

ELLEN DUTHIE: Há cerca de 20 anos, quando estava acabando a licenciatura na Universidade de Edimburgo, comecei a me interessar pela prática da filosofia para crianças. Há 10, comecei a desenvolver materiais próprios a fim de despertar o interesse filosófico nelas, sempre com um vínculo muito próximo com a literatura infantil, outro grande campo de meu interesse.

Em um dos meus projetos educativos e de investigação sobre literatura infantil e filosofia para crianças, Filosofía a la de tres, está a origem do Wonder Ponder. No Filosofía a la de tres, de quinze em quinze dias, acontecia uma sessão de diálogo filosófico com uma classe de educação infantil (de 3 a 5 anos) em uma escola pública de Madri. Normalmente eu usava livros-álbuns, ainda que utilizasse também outros tipos de estímulos: sensoriais (ruídos, experiências táteis), uma palavra ou combinações de várias, fotografias e outros experimentos. Porém, para certos temas havia uma escassez de materiais e, sobretudo, eu sentia que o material disponível nem sempre cobria todos os matizes da questão que queria tratar. Observei que um tema atraía especialmente as crianças dessa idade, era algo que lhes preocupava ou interessava: a crueldade. Nesse momento já tinham 4 anos. A crueldade é muito próxima das crianças em idade pré-escolar, tanto como “agressoras” quanto como “vítimas” ou “testemunhas”. Porém, não encontrava estímulos que lhes ajudassem a tratar do assunto como eu queria.

Então, uma ideia foi tomando forma na minha cabeça: uma série de cenas que mostravam diferentes tipos, diferentes perspectivas e diferentes matizes da crueldade. Algumas eram muito genéricas: uma cena de castigo, por exemplo. E outras, bem específicas: uma menina matando um bicho por querer. Eu buscava narrativas mínimas. Cada cena devia funcionar quase como um conto, com personagens, com um possível antes e depois. Era algo parecido a usar dez contos por vez e, assim, abordar o mesmo tema sob ângulos diversos.

Primeiro, pensei em desenhar eu mesma as cenas, mas não confiava muito em meus dotes artísticos, e foi aí que tive a sorte de falar sobre isso com Daniela Martagón, que havia conhecido em um seminário de literatura infantil. Comentei com ela sobre a minha frustração de não poder traduzir em imagens os diferentes matizes que gostaria de tratar com as crianças. Imagens que provocassem perguntas, dúvidas e questionamentos sobre o que é e o que não é cruel. Que despertassem a curiosidade e abordassem as diferentes perspectivas para se pensar sobre a questão. Daniela ficou encantada com a ideia. O tema da crueldade a atraía muito como ilustradora, porque lhe colocava um grande desafio: implicar verdadeiramente as crianças em algo que é estranhamente incômodo e reprovável, mas também fascinante e, ao fazê-lo, evitar a todo custo um viés moralista. Ela me pediu uma descrição das cenas para desenvolvê-las nas ilustrações.

Quando vi as imagens que Daniela tinha preparado a partir das minhas descrições e indicações, com suas contribuições fantásticas e suas próprias explorações, soube que, além de ter encontrado uma parceira maravilhosa de jogo, me deparava com algo muito valioso. E, quando as usei a primeira vez em sala de aula, compreendi em que medida tal enfoque era inovador. A rapidez do engajamento das crianças com o material não era corriqueira. Era suficiente levantar a imagem e, sem dizer nada, eles começavam o processo. Primeiro, tentando decifrar a imagem, descrevendo-a, e em seguida, querendo explicar a imagem, questionando porque estava acontecendo o que estava acontecendo. Sem mediação, com frequência passavam também a julgar a ação que viam na cena como reprovável ou não. Eu só precisava intervir depois, para organizar e mediar o diálogo. Porém, essa implicação sem mediação – IMEDIATA – desde o início me chamou atenção.

Mais tarde, quando mostraram à nossa amiga comum, Raquel Martínez, editora, o trabalho feito na escola, ela quis fazer parte do projeto. Raquel achou que ali tinha algo, que não era apenas uma maneira excelente de abordar a filosofia com crianças em sala de aula, mas que poderia se transformar em um suporte que chegaria a muitas outras crianças, que poderia ser lido individualmente ou em companhia, formalmente, na escola, ou de modo mais familiar, em casa.

Tomamos a decisão de editá-lo nós mesmas (e não seguir o caminho normal e enviá-lo a uma casa editorial) para poder jogar, investigar e nos atrevermos a experimentar. Depois de um ano, em novembro de 2014, Mundo Cruel (um convite a refletir sobre a crueldade) foi publicado na Espanha, acompanhado de sua versão em inglês, Cruelty Bites. Três anos mais tarde, os direitos de Mundo cruel foram vendidos para Coreia do Sul, Argentina, Chile, Uruguai, México, Colômbia, Brasil e Alemanha.

LUGAR DE LER: É curioso que Mundo Cruel seja o primeiro volume da coleção. Pensar a crueldade, hoje, me parece mesmo essencial. Nestes tempos em que tanto se fala de empatia e tolerância, vemos um individualismo narcísico crescente e, na impossibilidade de ver, de fato, o outro, uma grande intolerância, falta de empatia, de respeito, sem esquecer a violência e a agressividade, sentimentos mais primitivos, que dão lugar, muitas vezes, à crueldade. Se eu posso tudo, o que pode o outro? O olhar para o outro, ouvir, poder se colocar no lugar dele, exige que o eu se desloque, dê espaço, cale e escute, para que o que vem do outro, depois de decantar e se acomodar, empurrando aqui, encolhendo ali, combinando-se ou contrapondo-se ao que do eu era – então ou ainda – imutável, possa se apresentar, agora, novo. Você pode comentar isso?

ELLEN DUTHIE: Mundo cruel inaugurou a coleção porque foi o primeiro que fizemos. Nesse sentido, não houve uma decisão editorial consciente de criar um livro sobre a crueldade para ser o primeiro volume de uma série. É importante lembrar que o projeto não nasceu de uma decisão editorial, mas sim de uma necessidade concreta na sala de aula. É verdade que, uma vez que decidimos editá-lo e defini-lo como o início de uma coleção, apareceu muita gente nos sugerindo começar por um tema mais “suave”, dizendo que comercialmente poderia ser mais aconselhável dar a arrancada com algo menos chocante. Mas, preferimos não dar atenção às advertências e seguir adiante. Devo dizer que, pensando agora, foi um grande acerto. Chamou a atenção dos meios de comunicação na Espanha de uma maneira que não teria ocorrido se tivéssemos começado, por exemplo, com um dos títulos posteriores ‒ Yo, persona [Eu, pessoa], sobre a identidade, ou Lo que tú quieras [O que você quiser], sobre a liberdade. Há algo de chocante em propor uma abordagem sobre a crueldade em uma época em que a tendência é a de superproteger as crianças. Ao mesmo tempo, pensamos que é essencial para a formação ética dos pequenos falar e refletir sobre esse tema com eles. Porém, estamos acostumados a uma educação ética e a uma literatura cada vez mais a serviço de uma suposta “educação de valores”: no lugar de convidar à reflexão, reproduz-se uma versão moderna dos dez mandamentos ‒ deves ser tolerante, deves ser empático, deves reciclar etc. Mundo cruel evita emitir qualquer mandamento. Simplesmente te obriga, mediante às perguntas e imagens, a se colocar em diversos lugares, sendo que alguns desses lugares se assemelharão ao seu, e outros, ao lugar do outro. Obriga-nos a fazer esse exercício que muitas vezes não somos capazes de fazer na vida real. Sacode a gente, nos tira de nossa zona de conforto. E, de novo, pode se tornar incômodo para muitos. Aparece novamente essa desestabilização de que falamos antes.

Jogar sem Temer

LUGAR DE LER: E no fio da conversa, parece natural o nascimento dos outros dois projetos mencionados: Yo, persona (Eu, pessoa) e Lo que tú quieras (O que você quiser). Conte um pouco sobre como a ideia surgiu e a história de cada um deles. Há outros projetos?

ELLEN DUTHIE: Quando decidimos publicar Mundo cruel, traçamos um plano de edição, caso tudo corresse bem e as vendas nos permitissem seguir adiante com o projeto. Esse plano incluía seis títulos para a série “Filosofia visual para crianças”. Depois de Mundo cruel, vieram Yo, persona‒ sobre duas perguntas curtas, mas nada simples: o que sou? e quem sou? ‒ e Lo que tú quieras‒ sobre a liberdade. Agora estamos trabalhando em Pellízcame (Me belisca), sobre realidade, imaginação e sonho, que será publicado em alguns meses. Para completar essa série inicial de seis volumes, faltariam dois: ¿Será posible? (Será possível?), sobre a possibilidade e a impossibilidade, e Pero ¿para qué? (Mas, para quê?), sobre a felicidade e o sentido da vida. Também estamos trabalhando em outros projetos, entre os quais, uma série para crianças bem pequenas, sem nenhum texto, e outros ainda em estágios muito iniciais para anunciar. Tivemos também a oportunidade de levar a Filosofia visual ao museu, algo que nos interessa muito explorar no futuro.

Para Yo, persona e Lo que tú quieras, procedemos de forma parecida à de Mundo cruel, exceto por ter sido um pouco mais rápido, pois já conhecíamos o processo. Em Yo, persona (o título é uma referência ao livro Eu, robô, de Isaac Asimov), já havíamos realizado diversas oficinas com crianças de idades variadas e tínhamos muito material sobre identidade, áudios com diálogos e perguntas interessantes para explorar, mas demoramos certo tempo para decidir colocar todas as fichas no conceito de robô frente ao conceito de pessoa. Foi isso que nos permitiu dar coerência e certa unidade ao título, ainda que as questões tratadas dentro do conceito de identidade sejam muito variadas. Em Lo que tú quieras (o título, neste caso, é uma referência à definição mais comum de “liberdade”, quando se diz ao jovem, “faça o que quiser”), também tínhamos muito material de observação e diálogo com pessoas de todas as idades e, como nos outros títulos, nos baseamos nas preocupações mais habituais em relação à liberdade que as crianças de diferentes idades expressam. Os dois títulos foram muito bem recebidos na Espanha e já estão sendo editados em outros países (Coreia do Sul e Argentina).

LUGAR DE LER: As cenas são bem elaboradas, com imagens simples, mas muito expressivas. Você poderia falar um pouco sobre o processo de criação, produção e composição do material?

ELLEN DUTHIE: É um processo muito lento. O trabalho parte sempre da observação das crianças. O que lhes interessa? O que querem saber? O que precisam definir? Quando nos deparamos com um núcleo temático que acreditamos poder se conectar a eles, a primeira coisa que fazemos é um mapa conceitual do tema, um pouco como o pôster que incluímos no kit. Um mapa de perguntas divididas por conceitos ou ideias básicas dentro de cada grande núcleo temático. Logo nos perguntamos: como as crianças de determinada idade se relacionam com esse conjunto de perguntas? O que lhes interessa, o que as move, o que as toca, o que é relevante para elas? Partindo dessa observação, penso em uma série de cenas que podem se conectar a esses interesses ou, às vezes, se não me ocorrem cenas concretas, penso em um grupo de perguntas que queira provocar com a cena. Passo essas descrições e agrupamentos para a coautora, a ilustradora Daniela Martagón, que as traduz em imagens (se estiver convencida por elas) ou (se achar que não funcionam) as descarta, inventa novas e me devolve. Juntas, vemos se a ideia ou a intenção foi bem traduzida e se, efetivamente, provoca perguntas. Retificamos o que for necessário, refazemos ou descartamos, já com a editora do projeto, Raquel. Então, mostramos para crianças e adultos, sempre observando suas interpretações. Algumas vezes, achamos que vão dizer algo e o resultado é completamente inesperado. Corrigimos mais uma vez. Mudamos e tornamos a experimentar. Observamos a interpretação e repetimos tudo até ficarmos satisfeitas.

Uma vez publicado, recebemos muitos comentários de professores e famílias que usam o Wonder Ponder, o que alimenta nosso trabalho futuro. Outras fontes fundamentais para o processo são as oficinas de formação que ministramos para professores, bibliotecários e psicólogos, pois é muito interessante e instrutivo conhecer o ponto de vista desses profissionais.

Dessa forma, Wonder Ponder tem muitos autores. Nós, claro, mas também as crianças que vão às nossas oficinas e as pessoas com quem trabalhamos nas escolas, além de todos os adultos que participam das oficinas e cada pessoa que usa o material, independentemente de como e em que contexto.

Jogar sem temer

LUGAR DE LER: As propostas Wonder Ponder são convites a praticar a reflexão, a torná-la parte de nosso modo de estar no mundo. Por que é importante criar uma cultura da pergunta e da reflexão num momento que vivemos uma cultura de respostas e soluções, de preferência rápidas e incontestáveis?

ELLEN DUTHIE: Porque, se aceitarmos a cultura das respostas e soluções, aceitamos também que os outros façam as perguntas que nos cabem e delegamos parte de nossa humanidade a eles.

Imagem do livro "Mundo Cruel"de Ellen Duthie e Daniela Martagón

LUGAR DE LER: Como introduzir as sessões? Como apresentá-las e conduzi-las?

ELLEN DUTHIE: É difícil responder em poucas palavras, mas, a princípio, é importante que se delimite um determinado tipo de leitura. De certa forma, o envelope faz esse papel: “Abra, olhe, pense” são as únicas instruções que damos. É útil gerir as expectativas do leitor: de que se trata? De pensar na resposta correta? Não. De pensar em todas as possíveis respostas e ver qual ou quais melhor se sustentam. Não gostamos de dar instruções, queremos que os leitores se apropriem do jogo. Aos adultos, diria que levem em conta o que estão fazendo: compartilhar suas incertezas e seu não saber com as crianças. Nesse sentido, não é necessário que haja alguém para conduzir, é uma exploração em grupo.

LUGAR DE LER: Wonder Ponder retoma muitos conceitos que, de tanto repetirmos, estão se esvaziando. Mundo Cruel (vou me ater a ele, pois não conheço bem os outros) revela, em suas perguntas simples e diretas (onde simples sim e não são banidos como resposta), questões morais que podem passar desapercebidas, e ativa um olhar crítico e reflexivo – filosófico – às minúcias do dia a dia. A ideia de um jogo, no qual o adulto pode se juntar às crianças e se colocar nas situações propostas – de ouvir, pensar, falar, discutir, entrar em embate com as próprias convicções e crenças, se repensar, enfim – me parece uma alternativa ao receio, que muitas vezes sentimos, de falar sobre determinadas coisas com as crianças. Todos os jogadores em pé de igualdade – uma vez que não há erro ou acerto, ou mesmo uma resposta ideal – para pensar sobre uma situação possibilita um diálogo genuíno, a troca e construção de saberes, sem um posicionamento hierárquico dos participantes: todas as reflexões são bem-vindas. Você pode falar um pouco do papel do mediador e de sua ideia de filosofia como jogo?

ELLEN DUTHIE: Como disse antes, sempre acreditei, em todo o meu trabalho, na ideia da filosofia como um jogo. É um jogo sério, como todos os melhores, mas, ainda assim, um jogo. Não há resposta errada ou certa, mas há respostas melhores e piores, e parte do jogo está em detectar quais pertencem a cada uma das categorias. Todas as reflexões são bem-vindas, mas sempre com coerência, rigor e justificativa. Não há necessidade de ser uma conversa, embora não haja nenhum problema em ser apenas uma conversa. Pode ser, além disso, um diálogo filosófico, no qual todos exigem de si mesmos razões, argumentos e respostas construídos a partir do que foi dito anteriormente.

LUGAR DE LER: Seria importante que aprendêssemos a permanecer por um tempo com nossas perguntas. Entender que a dúvida é um caminho para a construção do conhecimento e, portanto, de nós mesmos. Você sugere retornar ao início – o que é uma pergunta? – e isso nos possibilita pensar como escolher a pergunta para que ela seja caminho e não partida ou chegada, e superar assim o temor à filosofia, à reflexão. A partir daí, podemos nos enriquecer com a generosidade do pensamento filosófico, a ideia de poder pensar junto, repensar, repensar-se, ir e voltar. Como definiria uma pergunta? Que tipo de pergunta você vê como caminho?

ELLEN DUTHIE: Acredito que é necessário haver perguntas de partida, de chegada e de caminho. Todas têm seu lugar. Mas também acho que passamos pouco tempo com as nossas perguntas. E que, às vezes, não somos sequer conscientes das perguntas que estamos procurando responder. Parar um pouco na pergunta, desfrutá-la antes de sair caminhando, escutá-la, deixá-la retumbar e dar voltas é fundamental. Uma pergunta genuína deve ser irresistível. É preciso compreendê-la melhor. Uma pergunta deve ser um projeto. E alguns projetos são longos – chegam a ser até vitalícios.

LUGAR DE LER: Vocês fazem workshops de formação para o Wonder Ponder. Você poderia dar algumas dicas para que a conversa seja mais rica, para uma realização ideal do jogo, se é que ela existe?

ELLEN DUTHIE: Não existe uma realização ideal do jogo. Ou talvez exista: a realização ideal é aquela que faz com que todos os que participem da atividade se sintam à vontade, aquela que pode ser inventada e aperfeiçoada pelos jogadores, a que seja desejada por eles. Não damos instruções. Somos cruéis nesse sentido. Para que o diálogo seja mais rico, o ideal é jogar de verdade. O caso é que nós, adultos, costumamos oferecer esses jogos às crianças porque é adequado para elas, colocando-nos em segundo plano como se, na verdade, não tivesse nada a ver conosco (jogamos, mas de mentira). Em Wonder Ponder, trabalhamos duro para que tanto os adultos como as crianças se sintam permanentemente questionados em suas posturas, para que não tenham outra saída senão jogar de verdade.

Também acredito ser importante enquadrar um tipo específico de leitura. Diante de tal bombardeio de perguntas, é preciso questionar as expectativas. O que se pretende? Se não há respostas definitivas, qual o propósito desse jogo? Ter claro que se trata, em primeiro lugar, de explorar com toda a exaustividade que pudermos o máximo de respostas possíveis a uma pergunta, analisar cada uma, verificando todas as suas possibilidades, suas camadas, circulando-a, detectando os pontos fracos da resposta, tornando-a a mais sólida que pudermos. É como um jogo de construção no qual a primeira função é detectar quais são os blocos. Isso já é uma tarefa grande, interessante e valiosa por si mesma. Em seguida, na medida em que formos jogando e aprendendo a refletir de forma mais pausada, poderemos testar diferentes construções e ver se se mantêm em pé.

Ilustração de Daniela Martagón

Filosofia e Literatura

LUGAR DE LER: Por que acha que preferimos não nos colocar certos problemas? Ou não sabemos como, ou nos acostumamos – ou tudo isso junto? Qual o papel do professor/educador na reversão desse padrão?

ELLEN DUTHIE: Acredito que seja a questão do controle. Como professor/educador/pais, supõe-se que temos de estar no controle, e temos medo de perdê-lo. Percebemos certos problemas como desestabilizadores e, se podemos evitá-los, nos parece muito melhor. Costuma ser uma censura “suave”, mais do que uma censura “dura”. Tudo bem, isso não faz falta, não é imprescindível, podemos deixar para mais tarde, os pais reclamaram (dizem os professores...), e aí ficam milhares de coisas para serem abordadas, à espera de que as abordemos. Às vezes, solicitando-o claramente.

Filosofia e literatura

LUGAR DE LER: A concepção do livro me remete aos livros-álbuns, que deixam o final aberto, colocando os leitores em uma posição ativa, com imagens e textos contribuindo para a (des)construção do sentido (até a ideia de colocar o texto no verso das imagens, possibilitando que estas continuem à vista, enquanto as perguntas são lidas). Você poderia comentar isso?

ELLEN DUTHIE: Sim, tem muito de livro-álbum ‑ no que diz respeito à história não estar toda contada, à posição ativa do leitor ao completá-la; e, nesse caso, não apenas o final é aberto, mas o princípio também. É como uma parte de realidade ficcional, não a história toda. Um pedaço dela. A posição ativa, além disso, é também a associação e comparação entre as distintas “fotografias” de histórias. Um final aberto com o qual os leitores podem contribuir.

LUGAR DE LER: Você fala que livros não são “desculpa”, mas faísca, motor. Pode falar um pouco sobre isso, a ideia do explorar e não trabalhar livros?

ELLEN DUTHIE: Há um excesso de livros usados como desculpa para se pensar em alguma coisa na qual o adulto gostaria de fazer a criança pensar, com ou sem a narrativa. A narrativa acompanha ou (mal) dissimula a intenção. Por outro lado, há livros que provocam a reflexão. Existe uma diferença entre provocar um pensamento concreto e provocar uma reflexão. Explorar convida à ação; trabalhar dita a reação.

LUGAR DE LER: Há autores que se distanciam das questões mais simples e genuínas em uma tentativa de construção poética que, a meu ver, deixa muito a desejar. Os livros que mais me agradam são aqueles que tratam das questões simples e cruciais, que abrem caminhos para a reflexão, convidam à investigação ou a um mergulho no desconhecido. Quais seus autores e livros preferidos, se tiver, e por quê?

ELLEN DUTHIE: Efetivamente, essa pretensa construção poética que tenta maquiar a falta de substância é possivelmente uma das características mais definidoras de uma grande parte da “má literatura”. Por outro lado, não é fácil dizer o que os autores e livros preferidos têm em comum: o que se considera “boa literatura”. Mesmo assim, vou tentar. Quatro dos meus autores infantis preferidos são Maurice Sendak, Astrid Lindgren, William Steig e Beatrix Potter. Quatro dos meus preferidos para adultos são Angela Carter, Vladimir Nabokov, Italo Calvino e Jane Austen. Escritores muito diferentes, dos quais gosto por motivos diferentes. Com alguns, tenho um vínculo afetivo (relacionado à leitura em voz alta que minha mãe continuou a fazer até além da minha entrada na adolescência, ou com a leitura que faço agora para meu filho), com outros tenho um vínculo intelectual (seduzem-me suas mentes e o passeio que me propõem, por onde me levam, como me levam; por um lado sinto que entendo, que compartilho sua forma de ver; mas, ao mesmo tempo, me emprestam seus olhos e descobrem para mim coisas ou formas de ver deliciosamente novas, surpreendentes, engenhosas, observadoras). Uma tentativa de definir o que todos esses autores e muitos de seus livros têm em comum: não me oferecem no que pensar, mas me instigam a pensar; não me entregam seus livros, mas me fazem submergir no mundo de seus livros.

Um dos meus favoritos de todos os tempos é Outside over there [Do outro lado], de Maurice Sendak, que tive a sorte de traduzir para o espanhol. A obra apresenta uma harmonia perfeita entre texto, imagem e sonoridade, que, quando lida em voz alta, a leva até você em vez de levar você até ela. Essa sim é uma construção poética a partir da simplicidade e de algo genuíno, capaz de abrir uma multiplicidade de caminhos.

LUGAR DE LER: Como você diz, filosofia é rebeldia. Pensando um pouco no mundo protegido em que vivemos, no modo como construímos nossas identidades, convicções, condutas – entendendo também que elas se transformam ao longo da vida, no contato com o outro, em suas mais variadas formas de apresentação (livros, amigos, conhecidos, colegas, filmes, enfim, experiências variadas) – me assusta ou confunde a ideia de que devemos estar de acordo com uma série de regras, sem ter a possibilidade de debatê-las. Se todos pensarmos o mesmo, lermos o mesmo, experimentarmos o mesmo, qual a possibilidade de transformação? Será que assim se constrói, de fato, uma sociedade mais empática e justa?

ELLEN DUTHIE: Seria incrível ter a receita para construir uma sociedade mais empática e justa. Mas não acredito que possamos garantir isso, mesmo quando acompanhamos a infância com reflexões atentas e cuidadosas sobre o mundo e as verdades que nos chegam como dadas, ou quando criamos as condições e os espaços e desenvolvemos os meios para que isso ocorra. Se reflexão filosófica fosse uma garantia para transformar alguém em uma pessoa melhor, todos os filósofos seriam pessoas estupendas e isso, como sabemos, não é necessariamente o caso. Um amigo escritor, ao falar sobre Wonder Ponder, disse uma vez que parecia um projeto muito otimista, porque partia de uma crença firme na bondade intrínseca do exercício da reflexão: uma crença de que o porto ao qual se chega depois de refletir é bom, ou, ao menos, melhor do que o lugar onde se estava antes da reflexão. Eu concordo que é muito otimista. Mas é importante definir o que exatamente quer dizer o porto ao qual se chega é bom ou melhor que o anterior. “Bom” não significa que se deva pensar o que consideramos que se deve pensar, mas que se entenda que cada um tem o direito e o dever de construir seus próprios caminhos de reflexão e que ninguém tem o direito de impor os seus. E, sim, creio que é mais provável que uma sociedade habituada à reflexão crítica e a exigir fundamentação ante as supostas certezas dos demais e próprias sobre o mundo seja mais empática e justa do que uma sociedade que procure, colecione, repita e promova supostas certezas, sem avaliá-las criticamente. E se não for mais justa ou empática, não terá sido por não haver tentado.

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