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Era uma vez outra ideia 

a contemporaneidade dos (re)contos de fadas

 

por Silvana Tavano

Não saberia dizer quantas vezes li a história dos três porquinhos nas mil e uma noites da infância do meu filho. O conto que Joseph Jacobs escreveu em 1898 era o best-seller dos nossos serões e, por mais que eu tentasse variar, sempre acabávamos voltando a ele. Minha leitura era interrompida no ato se, por distração, eu pulasse uma frase ou trocasse qualquer palavra; mesmo assim, certo dia arrisquei perguntar: e se o primeiro porquinho fosse muito esperto e conseguisse liquidar o lobo? Como essa história continuaria? Apesar dos protestos, o pequeno acabou topando a provocação, e, a partir de então, brincar de “e se” virou rotina: os três porquinhos às vezes eram dez ou contavam com a ajuda poderosa de um super-porco que dava uma surra no lobo, ou fugiam para a casa da Chapeuzinho Vermelho, ou, ainda, eram devorados sem dó, mas o lobo também morria com indigestão. Permitíamos que a imaginação fluísse livremente entre versões ora trágicas, ora hilárias, nonsense ou surpreendentes, num jogo que reproduzia a própria origem do reconto, gênero que nasceu há séculos como atividade oral – um narrador contando histórias para uma plateia – e que segue dessa forma até hoje na prática tão frequente das salas de aula, com a leitura de um texto seguida pelo exercício criativo de recontar.

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Igualmente antigo é o registro escrito das histórias que brotam da oralidade, e foi assim que as versões de contos de fadas recolhidas por Perrault, no século 17, e pelos Irmãos Grimm, no século 19, chegaram até o século 21, ocupando um lugar de destaque na produção de autores contemporâneos e não só de literatura infantil. Os fios que, lá atrás, teceram os contos de fadas, seguem se entremeando em combinações inusitadas que dialogam com o que podemos chamar de “texto-zero”, ou o que seria o mais próximo disso, pois, como o próprio Jacob Grimm reconhece numa carta ao estudioso alemão Achim von Arnin, as histórias transcritas por eles e publicadas em 1812 são também recontos: “Não se pode quebrar um ovo sem que parte da clara fique aderida à casca, porém o mais importante é não romper a gema. Preservar a gema, o núcleo fundamental da história, sem acrescentar ou mudar nada de essencial – isto será a fidelidade no registro escrito de uma narrativa recolhida na oralidade”[1]. Partindo da metáfora usada por Grimm, podemos dizer que ainda é essa mesma “gema” o ingrediente essencial das histórias que recontamos, com uma diferença importante: as novas receitas não apenas permitem como estimulam acréscimos e mudanças; abre-se, então, um amplo universo de possibilidades que ressignificam os contos de fadas com novas interpretações: valendo-se da paródia ou da atualização, os autores dialogam com o texto original estabelecendo uma relação intertextual criativa que vai além da mera renovação. Trata-se de (re)criar, definindo o reconto como uma pós-produção que resulta em obra sempre inédita.

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Chapeuzinho Amarelo, Chico Buarque e Ziraldo, ed.Yelowfante

A partir daí, personagens originalmente planos ressurgem com uma vida interior complexa, expondo angústias ou construindo sonhos que põem em cena questões contemporâneas. Muito além do “felizes para sempre”, as narrativas modernas se tecem a partir de contradições, criam nuances que aproximam bruxas de fadas, transformam princesas ingênuas em mulheres emancipadas – por vezes feministas combativas –, vestindo o rei, antes nu, com ideias revolucionárias. Ao evocar a figura de Chapeuzinho Vermelho em Fita Verde no Cabelo[2] (conto de Guimarães Rosa apresentado como uma “nova velha história”), o autor nos transporta para outro cenário, numa realidade sombria que obriga a protagonista a romper os limites da inocência diante da avó que envelhece, adoece e finalmente morre; encena-se aqui o rito de passagem da infância para a adolescência, colocando a personagem diante das tristezas do mundo: os lenhadores dão conta dos lobos, mas a menina compreende que nada escapa do tempo, um lobo invisível que devora tudo e todos. De outra forma, igualmente inovadora, Chico Buarque muda as cores da história clássica em Chapeuzinho Amarelo[3], brincando com a linguagem – matéria-prima do autor – para subverter os sentidos semântico e simbólico das palavras: Chapeuzinho Amarelo acaba por devorar o lobo que vira bolo, e assim se liberta de todos os medos.

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A verdadeira história dos três porquinhos, Scieszka e Smith, ed. Companhia das letrinhas

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Dependendo da escolha do tema que se deseja enfocar – seja uma questão social, seja um aspecto ligado à subjetividade –, caberá o uso de recursos narrativos apropriados à intenção de cada reconto: modificações, atualizações, um novo e inesperado final, ou a visão reveladora de outro ponto de vista são alguns dos instrumentos que os autores têm à mão para provocar reflexões, iluminar novos sentidos, incorporando significados a partir do repertório cultural de cada época. Regra geral, os recontos são tecidos em torno daquele mesmo fio original – dele, surgem infinidades de novas tramas, abrindo perspectivas inusitadas para histórias em que é possível sentir o frescor do ineditismo sem deixar de ouvir o eco de sua origem. "Não era a mesma vez" é um dos motes capazes de disparar os (re)contos de fadas, "uma outra ou nova vez" que traz a novidade ao mesmo tempo em que reforça a longevidade dessas histórias. A partir dessa equação, Joões e Marias, Cinderelas e Porquinhos continuam se multiplicando em centenas de versões: “(...) hoje podemos ler sobre porcos havaianos e seu conflito com um tubarão, porcos cajuns enfrentando um crocodilo, ou porcos apalaches levando a melhor sobre uma raposa”[4]. Mais do que recontextualizar situações e personagens, somos levados a refletir sobre outros aspectos lendo quase a mesma história; é o que acontece no livro A Verdadeira História dos Três Porquinhos, de Jon Scieszka e Lane Smith, lançado em 1993, pela Companhia das Letrinhas – o relato do simpático lobo Alexander T. Wolf faz o leitor pensar sobre um tema que não está presente no conto que conhecemos: ao oferecer sua convincente versão dos fatos, o personagem coloca em questão o que é, afinal, a verdade, e conta que, gripadíssimo e sem apetite para leitões assados, batia de porta em porta soltando espirros estrondosos, mas de fato só queria pedir... uma xícara de açúcar. O tataravô de Alexander T. Wolf não teve vez nem voz no seu enredo de estreia, mas, para nossa sorte, o lobo de Joseph Jacob continua vivo e soprando histórias, assim como todo o elenco dos contos de fadas, personagens que seguem inspirando recontos e nos surpreendem a cada reencontro.

[1] Conto e Reconto – Das Fontes à Reinvenção, Vera Teixeira de Aguiar e Alice Áurea Penteado Martha (orgs.), Cultura Acadêmica, São Paulo, 2012.

[2] Fita Verde no Cabelo – Nova Velha História” de Guimarães Rosa, ilustrações de Roger Mello, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1992.

[3] Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, ilustrações de Ziraldo, 41ª ed., Yellowfante, Belo Horizonte, 2020.

[4] Em Contos de Fadas – Edição Comentada e Ilustrada, por Maria Tatar, Zahar, Rio de Janeiro, 2004.

Silvana Tavano

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É autora de livros para crianças e jovens, entre os quais se destacam Como começa e Longe (ambos da Salamandra), Creuza em crise (Companhia das Letrinhas), Onde você mora? (Ozé), E no fim… Tudo recomeça de outro jeito (Moderna),  Pssssssssssiu!  – indicado ao Jabuti e ganhador do prêmio João de Barro de Literatura para Crianças e Jovens em 2011 –, que será relançado em breve pela Salamandra, e Feio, eu? (Livros da Matriz). Também é professora no curso de Pós-Graduação Formação de Escritores do Instituto Superior Vera Cruz-SP e no Lugar de Ler.

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