Antidogmatismo e bibliotecas
As bibliotecas, usinas do pensamento crítico
por Cecilia Bajour
tradução de Dani Gutfreund
Este texto foi apresentado no 8º Seminário de Literatura Infantil e Juvenil, realizado de 5 a 8 de novembro de 2019, na UFSC – Florianópolis.
Comemoro com alegria este convite para falar sobre bibliotecas vivas e caminhos alternativos, que apostam em modos emancipadores de existência em tempos desafiadores como estes que nos cabem viver.
Antes de vir a este encontro, eu estava pensando em como as bibliotecas são fundamentalmente necessárias em nossas vidas, em nossos trabalhos, em nossos dias. Portanto, fiz o exercício, para mim muito estimulante, de me lembrar desses vínculos em diversas tarefas e momentos distintos nos últimos anos. Um tipo de autobiografia de bibliotecas. Primeiro, me lembrei da época em que trabalhei como coordenadora de formação sobre bibliotecas e bibliotecárixs escolares na Escuela de Capacitación Docente [Escola de Magistério], Cepa, na cidade de Buenos Aires: tratava-se de uma política pública de formação que tinha enfoque no papel fundamental da biblioteca na vida das escolas e seu vínculo com o ensino e a aprendizagem. A formação considerava a todxs xs participantes a partir da convicção de que as bibliotecas são assuntos que envolvem a todxs: bibliotecárixs, professorxs, equipes de direção das escolas, equipes de formação em diversas áreas de conhecimento. Também me veio à memória a colaboração – ainda vigente – entre a Unsam [Universidade de San Martín] e a biblioteca e centro de documentação da infância e literatura infantil La Nube – que implica em múltiplos aportes vinculados à pesquisa, formação e extensão dessas temáticas. Nestes últimos anos, junto à equipe multidisciplinar da Unsan, viemos realizando uma pesquisa sobre práticas de potencial transformador (leitura, escrita e oralidade), várias delas em bibliotecas populares e escolares. Há também o trabalho de vínculo dos futurxs docentes com as bibliotecas e bibliotecárixs dos professorados públicos nos quais trabalho e, especialmente, o vínculo enriquecedor com a Juanito Laguna, biblioteca pública e gratuita do sindicato da Unión de Trabajadores de la Educación (UTE) [União dos Trabalhadores da Educação] da cidade com suas concepções sobre leitores, leitura, literatura e outros objetos culturais, visões democráticas e desafiadoras dessas que nunca deixamos de aprender. Deve-se notar o valor da aposta de um grêmio docente na sustentação de uma biblioteca especializada tanto para seus afiliadxs como para toda a comunidade.
Biblioteca La Nube: infancia e cultura
Mais recentemente, uma experiência de bairro que me convida a olhar para outras facetas do mundo das bibliotecas na relação com a comunidade: a que protagonizamos com o coletivo da Biblioteca al paso Artigas no bairro de Paternal, onde moro, que por sua vez faz parte da rede de bibliotecas de rua da minha cidade, outra maneira singular de encontro dxs leitorxs com livros e com propostas culturais no caminho, uma forma possível de revitalizar a rua com sentimentos comunitários e solidários. As bibliotecas de rua se organizam a partir da proposta de levar um livro e deixar outro, ou seja, não existem mediadores que realizam os empréstimos nem o controle de materiais – há uma autorregulação. Em nosso caso, há um acompanhamento, por parte do nosso coletivo, do material que circula, priorizando literatura e livros informativos, deixando de lado, por exemplo, livros didáticos ou material em mau estado. Também recebemos doações e estimulamos que, além dos livros para todos os públicos, sempre haja literatura infantil, já que muitas crianças se aproximam de nossa biblioteca e grande parte das atividades culturais que realizamos envolvem esse público.
Quis trazer essas ressonâncias diversas da experiência acumulada de todos esses anos pela potência das conexões de saberes e práticas que as bibliotecas habilitam e, sobretudo, porque as considero estratégias ativadoras da interrogação, da expansão das culturas no plural, da habilitação de espaços ainda não pensados, da indagação sobre caminhos alternativos, brechas, desvios luminosos, e da abertura das certezas absolutas para discussão.
En una época,
sólo la certeza me daba
alegría, imagínense….
La certeza, una cosa muerta
[Em uma época,
só a certeza me dava
alegria, imaginem…
A certeza, uma coisa morta]
Louise Glûck
Biblioteca al paso Artigas
Em nosso país, acabamos de começar a sair de tempos em que o governo nacional desprezava o pensamento crítico, comparando-o ardilosamente com emocionalidades postuladas como negativas para, em troca, privilegiar o que se entende por “entusiasmo e otimismo” como modos de estar no mundo. Segundo essa visão simplificadora e mentirosa, aqueles que exercem o pensamento crítico seriam tristes e pessimistas. Não à toa é o auge da educação emocional impulsionada por elxs para direcionar e classificar emoções. Seguiremos com essa análise, porém é interessante destacar, em relação a nosso tema, a falsa oposição entre pensamento crítico e emocionalidade, desenvolvida por muitos expoentes do neoliberalismo no âmbito educacional e em outros.
A crítica é a base do pensamento autônomo, por isso, é o contrário do dogma. O dogmatismo supõe a aceitação acrítica de enunciados, visões de mundo e práticas concretas que se apresentam como únicas e certas. Podem ser de qualquer signo ideológico. O dogmático tem mais a ver com a forma do que com o conteúdo. O conteúdo pode ter um viés progressista, mas se for comunicado como um ato de fé, como uma verdade inquestionável, exclui-se uma característica fundamental do pensamento crítico, que é a abertura ao questionamento e ao caráter polifônico e social de toda construção de conhecimento.
A prática do “não saber” como postura metodológica e ideológica pode ser aliada para construir saberes não dogmáticos. Como disse a poeta Wislawa Szymborska em um fragmento de seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel em 1996:
“E é por isso que eu prezo tanto aquela pequena expressão, “não sei”. Ela é curta, mas tem asas enormes. Ela amplia nossas vidas para incluir nela nossos espaços interiores, mas também os exteriores, em que está suspensa a nossa pequena Terra.” [1]
Retomo o sentido de “não sei” para Szymborska: palavras aladas e antidogmáticas, combustível para o aprender no mundo e nas bibliotecas.
As bibliotecas podem ser um espaço onde se discutem os dogmas se as pensarmos sob uma perspectiva receptiva e provocadora de interrogações, sensível à riqueza inesgotável dxs leitorxs, suas buscas e perguntas genuínas, seja qual for sua experiência e contexto de vida, social e cultural.
Proponho compartilhar algumas aproximações sobre como aprendi e continuo aprendendo sobre o antidogmatismo no fazer e pensar de bibliotecárixs e bibliotecas.
Antes de mais nada: a escuta. O antidogmatismo é dialógico. A permeabilidade ao pensar de outras pessoas, à experiência singular, aos modos particulares de dizer ou, às vezes, calar sua demanda, suas buscas, suas inquietudes, tudo isso implica a aceitação de que os saberes e modos de fazer de uma biblioteca nunca estão dados quando entramos ali, mas mudam constantemente, reafirmam-se ou colocam-se em discussão. Isso é possível com a abertura ávida e o olhar atento sobre o que se tem a dizer e ensinar axs leitorxs em um amplo sentido do que significa ser leitor/a nestes tempos. Também pela busca permanente de ampliação da informação e o autoquestionamento por parte dxs responsáveis das bibliotecas, curiosxs indómitxs.
Biblioteca al paso Artigas
Aprendi também que a ordem pode ser antidogmática, ainda que isso pareça um oximoro. A preocupação e exigência de uma ordem excessiva e inflexível rapidamente se torna um dogma. Porém, se a ordem flexível é considerada como um fator democratizante, como garantia acolhedora das pesquisas e dos acessos, xs leitorxs sentem que são levados em conta e as apropriações se tornam possíveis. Toda busca precisa da habilitação do caos inicial, da dispersão, da viagem um pouco louca entre um texto e outro, da deriva entre uma pergunta e outra, entre os conceitos que às vezes se conectam e, às vezes, não. As táticas e estratégias de organização das bibliotecas podem se tornar, portanto, salvo-condutos às respostas e à construção de caminhos próprios de leitura, e não obstáculos que intimidam ou desanimam.
No encontro entre leitorxs e bibliotecárixs é preciso que as lógicas diferentes, aparentemente contraditórias, sejam viabilizadas: uma centrífuga, a da expansão e dispersão inicial que, em muitas situações, caracteriza as primeiras buscas por informação dxs leitorxs que se colocam perguntas que algumas vezes são percebidas por elxs mesmxs como vagas ou caóticas; outra lógica centrípeta, a dxs bibliotecárixs que, ao abordar a orientação e busca de material, precisam delimitar e definir os termos, restrição imprescindível para represar o caos. O poeta argentino Roberto Juarroz dizia em um poema de Poesía Vertical (22): “hay que ponerle pruebas al infinito, a ver si resiste” [há que se por à prova o infinito, veremos]. O infinito assusta menos quando, na biblioteca, se dá lugar ao diálogo curioso e amigável entre xs leitores como exploradores de saberes em construção e xs bibliotecárixs (outrxs leitorxs) que orientam e organizam a informação para chegar com mais precisão a esses saberes e demarcar os caminhos possíveis.
Biblioteca al paso Artigas
Com relação aos termos e descritores, também aprendi com e nas bibliotecas a colocar em discussão os purismos dogmatizantes e a enriquecer minhas indagações com a valorização das impurezas, as hibridizações, as fronteiras difusas, a historicidade das terminologias e as derivas por vezes insólitas a seus usos.
Novamente, para evitar os dogmas, a escuta de um e outro lado sobre o uso dos termos por parte das diferentes disciplinas se torna necessária, os diversos contextos, bibliotecas, leitorxs. No caso das bibliotecas escolares e institutos de magistério, essa questão pode ser uma situação de ensino (razão de ser fundamental dessas bibliotecas específicas) para demonstrar que os conceitos e os gêneros não são eternos, nem naturais, nem excludentes, mas históricos, mutáveis, híbridos. Por exemplo, um caso muito didático, no qual aprendem muito meus alunos de literatura na educação inicial de um dos institutos de magistério onde trabalho, é a explicitação da dúvida sobre como classificar genericamente alguns livros. Isso acontece tanto nas minhas aulas quanto quando visitam a Biblioteca Juanito Laguna de UTE e seus responsáveis lhes mostram livros que admitem mais de uma classificação genérica, como os hibridismos entre livro ilustrado e livro informativo, ou entre livro ilustrado e história em quadrinhos. Os textos que fogem às classificações únicas são muito estimulantes para aprender sobre os gêneros sem simplificá-los. Onde colocá-los? A localização física requer uma decisão, mas a admissão explícita da dúvida é uma das formas de antidogmatismo.
A demanda temática também é uma das zonas onde se evidencia a tensão entre posições dogmáticas e visões abertas, polissêmicas. Em particular na relação com o literário, o pedido de “livros para” é um clássico entre as solicitações nas bibliotecas, especialmente nas escolares. Livros para trabalhar o cuidado com o planeta, a antidiscriminação, a adoção, as bruxas, os piratas etc. Embora o interesse pelo temático seja uma porta de entrada de muitxs leitorxs e espectadorxs aos textos artísticos, o problema é o reducionismo, ou seja, quando a expectativa se limita a essa dimensão e se encerra a possibilidade do encontro com outras camadas de significado, o jogo com as formas, a construção artística dos textos. O reducionismo pode, assim, ser uma variante do dogmatismo já que frequentemente as solicitações temáticas ratificam verdades prévias, consideradas de antemão como valiosas. Enclausura-se a possibilidade de questionar, incomodar ou gerar incerteza, característica dos textos artísticos que não são funcionais para o pensamento único, seja qual for seu signo ideológico. Os textos que tentam dar resposta a demandas politicamente corretas devem ser unidirecionais e isso pode interpelar os responsáveis das bibliotecas a convidar a abrir o jogo, questionar o monológico e expandir os olhares para outros textos que tornem mais complexo o tratamento dos temas.
Uma forma preocupante do dogmatismo nos últimos tempos é a chamada pós-verdade. A mentira que é apresentada como verdade aponta para a geração de um impacto emocional que pode ser de surpresa ou rechaço, e que obtura o pensamento crítico. Ao instalar como certas notícias e fatos falsos busca-se rejeitar o apelo a fontes fidedignas porque se difunde a sensação de que tudo vale ou, melhor dizendo, nada tem valor de verdade. As fake news buscam monopolizar os sentidos e as emoções, instalando discurso sem valor de verdade de modo que o pensamento divergente fique desacreditado. Neste sentido, o papel das bibliotecas é vital tanto para tornar visível o modus operandi das notícias falsas como para formar criticamente xs leitorxs na busca por informação.
Biblioteca al paso Artigas
Ainda que haja muitas outras expressões do antidogmático que aprendi e aprendo na vida das bibliotecas, quero finalizar me referindo a uma experiência que venho vivendo na minha participação no coletivo Biblioteca al paso Artigas. Tem a ver com os vínculos entre xs participantes que dão continuidade às propostas e tarefas. A democratização das relações caracteriza em grande medida nossa identidade já que, por não existir uma organização piramidal, o intercâmbio horizontal e a cooperação que contribui para a consolidação da confiança e da afetividade entre nós participantes são predominantes. Mesmo que se trate de uma comunidade de práticas[2] que não são feitas por designação ou obrigação, considero que seja possível aprender sobre o que acontece ali para repensar modos de vinculação nos âmbitos profissionais em que desenvolvemos nossas tarefas. As comunidades de práticas são formas de organização que põem em discussão as relações hierárquicas reais ou simbólicas. Como em todos os grupos, há quem se destaque por uma ou outra razão, porém predomina um contexto de apoio e liderança compartilhada, que permite um funcionamento autônomo, criativo e muito colaborativo. Isso possibilita a aceitação de pontos de vista díspares sobre uma mesma questão e a promoção de espaços de intercâmbios em que saberem fluam e se expandam.
As bibliotecas nas escolas e nos institutos de magistério são usinas de vínculos humanos diversos tanto dentro como fora das instituições. A democratização das relações e dos saberes se torna vital, e sabemos por experiência que a consciência e visão das equipes de condução são fundamentais para viabilizar, dar conteúdo e potencializar esses laços democráticos. Quem sabe se trata da via mais necessária de antidogmatismo: a que dá ou pode dar forma e conteúdo aos vínculos entre pessoas que fazem parte das comunidades educativas. Não bastam discursos de aparência democrática se as práticas de quem os enunciam não condizem com os mesmos. A dissociação entre o falar e o fazer não se dá bem com antidogmatismo e pode derivar em práticas autoritárias e que subestimam o lugar do outrx em construções coletivas.
As bibliotecas podem contribuir – tantas já o vêm fazendo de modos criativos e sensíveis – para reparar o maltrato às subjetividades nesses últimos anos, o golpe ao pensamento crítico e autônomo, a desconfiança nxs outrxs, a tentativa de destruir as afetividades solidárias, os laços sociais. As consequências do dano se traduzem em muitos casos na tendência ao pensamento binário, ao empobrecimento conceitual, à submissão à linguagem tecnocrata e controladora. A consciência de como essas feridas afetam a vida de nossas comunidades pode ser semente de visões mais complexas, cada vez mais afetivas. As práticas antidogmáticas, antimeritocráticas e solidárias nas bibliotecas podem ser de novas alegrias do sentir, pensar, fazer. Para que um novo tempo nasça: nossos povos merecem ser felizes.
foto: equipe do ProfeLetras da UFRJ
Cecilia Bajour é mestre em Livros e Literatura para Crianças e Jovens (Universidade Autônoma de Barcelona. Banco do Livro da Venezuela. FGSR), professora de Letras na Universidade de Buenos Aires e professora titular da disciplina de Literatura Infantil e Juvenil na Universidade Nacional de San Martín. Atuou como Coordenadora Acadêmica da Pós-Graduação em Literatura Infantil e Juvenil organizada pela CePA entre 2002 e 2011 (Ministério da Educação do Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires) e, atualmente, coordena a área de Literatura Infantil e Juvenil do Programa de Leitura, Escrita e Literatura Infantil e Juvenil (PLELIJ) da Universidade Nacional de San Martín. Também é professora em Institutos de Formação de Professores da cidade de Buenos Aires.
É autora de Ouvir nas entrelinhas – o valor da escuta nas práticas de leitura (Pulo do Gato, 2013), La orfebrería del silencio. La construcción de lo no dicho en los libros-álbum (Editorial Comunicarte, 2016) e Juego con palabras, palabras en juego (Conaculta, 2015). Faz parte do Conselho Consultivo da Revista Emília - Revista Digital de Leitura e Literatura para crianças e jovens, criada em São Paulo, Brasil.
Imagens: arquivo pessoal
[1] Tradução do trecho de Carlos Alberto Bárbaro no http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/O-poeta-e-o-mundo
[2] Conceito desenvolvido por Ettiene Wenger em seu livro Comunidades de Prática – aprendizagem, significado e identidade. Barcelona: Paidos,2001