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Não é a primeira vez que conto a história da minha amiga Anna – na verdade, acho que já virou uma lenda urbana de tanto repeti-la.

Quando a mãe de Anna lia contos populares para ela, não querendo macular a inocência da filha, permitia-lhe acesso apenas aos personagens edificantes da história. As irmãs da Cinderela? Gostavam tanto da meia-irmã que elas mesmas fizeram seu vestido para o baile do príncipe. A madrasta da Branca de Neve? Adorava a enteada de tal forma que fez seu bolo de casamento com as próprias mãos.

Minha amiga Anna escutava a mãe e logo olhava ao seu redor, perplexa. Não entendia. Nos contos, todos eram bons, queriam só o melhor para seus semelhantes: eram generosos, amáveis, desprendidos. Anna, porém, às vezes tinha inveja de sua companheira de carteira na sala de aula, porque sonhava em ter tranças tão bonitas quanto as dela. Chegava até mesmo a querer cortá-las. Anna sempre queria chegar em primeiro lugar e competia muito com suas colegas… Ajudá-las a ganhar a atenção do príncipe? Estão loucos? Era ao lado da pessoa mais popular da classe que ela queria se sentar, sem dar opção a nenhuma outra pessoa.  

Se todos eram tão bons como dizia sua mãe, Anna tinha um problema: ela era malvada, invejosa e egoísta. Até cruel, às vezes.  

O que havia de errado com ela?

Enfrentar o lobo para crescer

ou a importância de as crianças terem seu próprio jeito de olhar

 

por Arianna Squilloni

Nada. Na verdade, era uma menina normal, que percebia tudo o que se interpunha entre ela e a imediata realização de seus desejos como um obstáculo a eliminar. Todo mundo é assim. Assim como é normal nos darmos conta de que a nossa sensação de ser o centro do universo é a mesma daqueles ao nosso redor, até que possamos abandonar nosso solipsismo inicial.

Mas, isso, Anna não sabia e se sentia um bicho raro, com quem as coisas, evidentemente, não andavam bem.  

Porque Anna entendia que havia o bem e o mal, não por tê-los conhecido através dos contos, mas por que encontrava esses sentimentos dentro dela mesma.

O bem e o mal vêm de fábrica. São nossos componentes desde o princípio. Por isso, não há qualquer suposta inocência a ser preservada nesse sentido. A inocência se move por outros caminhos e, às vezes, ela mesma pode ser cruel. Por isso é bom problematizá-la, como fazem as caixas filosóficas do Wonder Ponder, especialmente Mundo cruel (1).

Seria possível citar muita literatura a respeito desse tema nos campos da neurociência, psicologia e espiritualidade. Um bom exemplo é Alan Watts, teólogo, especialista em religiões orientais, nascido na Inglaterra em 1915. Sua maneira de escrever, embebida de senso de humor e de uma clara compreensão daquilo que controlamos e daquilo que não (2), me fascina. Cada vez que Alan Watts se deparava com um mentor espiritual, que aparentava não ter nem um pingo de travessura, ele suspeitava que o tipo não tivesse nenhuma ideia da natureza humana que, como o próprio universo, se fundamenta na dualidade. Ou, como comentam o psicólogo Rick Hanson e o neurologista Richard Mendius, que o amor e o ódio respondem a uma característica evolutiva: o amor nasce na pré-história para estreitar os laços que unem as pequenas comunidades de caçadores-coletores, que se tornam concorrentes em um meio particularmente hostil (3).

Silenciar um elemento não o anula nem o cancela, apenas permite que ele cresça sem controle ou consciência. Um pouco como nas tragédias gregas: os pais de Édipo sabiam que aquele menino causaria o mal, porém, incapazes de matá-lo tal como lhes tinha sido aconselhado pelo oráculo, tampouco conseguindo imaginar outra solução, o abandonam na floresta, convencidos de que assim solucionariam o problema, apenas o escondendo. No entanto, é precisamente nesse momento que o problema ganha vida, porque cresce, evolui inesperadamente e, no dia em que aparecer na porta da sua casa, será tarde demais para qualquer coisa.

Diametralmente oposto é o passeio que Jon Klassen propõe em sua trilogia sobre chapéus (ed. Martins Fontes): Quero meu chapéu de volta ilustra a perda da inocência do urso; Este chapéu não é meu fala do sujeito maduro, que já perdeu a inocência e quer sair impune; e We found a hat [Encontramos um chapéu, ], fechando o ciclo, conta que um outro mundo é possível. A uma reação imediata de defesa (do urso), segue-se uma reação conscientemente mesquinha (e irresistivelmente cômica) no caso do peixinho, para terminar com uma abertura: a tartaruga que conta (como em um relato) que existe outra maneira de se fazer as coisas.

Mas, para imaginar, é necessário ter consciência da sua força e saber que nem tudo está decidido de antemão. Percorremos um longo caminho desde a Idade Média, quando não havia outro remédio a não ser converter-se em ajudante de si mesmo, quando o sentimento de família era tão ausente e a vida tão frágil que, se um filho morresse, o consolo dos pais não seria outro que não substituir a criança o mais rápido possível.

A Idade Média, em certo sentido (4), foi uma época em que tudo ficava à vista, não existia a vida privada, pois a vida acontecia nas ruas e era uma trama de relações sociais. Se nos dias de hoje, por meio das redes sociais, podemos participar virtualmente do cotidiano dos amigos e conhecidos em qualquer hora do dia, antigamente era mais ou menos a mesma coisa, só que presencialmente. As crianças tinham que abandonar suas casas para serem aprendizes nas casas de outras pessoas ou para desbravarem o mundo, junto a um estudante mais velho, que adquiria autoridade paterna sobre o menor, com autorização para mandar o jovem mendigar, conseguir comida e dinheiro como quer que fosse, dar-lhe as palmadas que quisesse se desobedecesse ou se não tinha vontade de fazê-lo, porque seus direitos sobre o jovem tinham reconhecimento oficial. Ainda assim, à sua maneira, o protegia e considerava-se essa relação brutal melhor do que mandar o menino sozinho pelo mundo.

Relações desse tipo são descritas em diários da época, como por exemplo, a Vida de Thomas Platter, um alemão que no início do século XV viajou pela Europa Meridional seguindo os passos de seu primo, em busca de professores de renome nos colégios recém-estabelecidos e, ao fim de alguns anos, conseguiu se libertar de tão cruel proteção em sua segunda tentativa de fuga.  

Contudo, em paralelo a essa forma de vida e instrução, iam ganhando terreno preocupações de ordem moral, levantadas especialmente pela igreja e pelos jesuítas, que pressionavam os colégios a se converterem em um regime de internato, para que se pudesse vigiar de perto os estudantes.

Assim, ao longo dos séculos XV e XVI, assiste-se a uma profunda evolução, na qual se instaura um sistema de controle rígido, acompanhado de delação e castigo corporal. A razão que justifica tudo isso reside na nova convicção de que a infância é uma idade frágil, cuja inocência deve ser preservada a todo custo (para que as crianças não deslizem em condutas pouco edificantes) e os professores têm a responsabilidade moral de garantir que assim seja.

Já ao longo do século XVIII assiste-se a uma mudança profunda na sociedade, em que as casas deixam de ser portas afora e passam a se concentrar em seu interior.

Nesse marco, a família adquire um espaço no qual passa a desenvolver seu próprio sentimento afetivo, e a ternura pela infância é descoberta: cada pequeno ou grande sinal de enfermidade é cuidado; existe o acompanhamento, passo a passo, do desenvolvimento escolar (e, portanto, educativo), com o objetivo de manter as crianças em casa, e não mais em regime de internato, mas mandando-as para a escola apenas para as horas letivas; e a escola que mantinha um sistema de castigo violento e humilhante começa a ser criticada.

A infância se abre a uma nova época de cuidados. Pensando bem, é precisamente nesse momento que, a partir de um marco crescente de proteção e abrigo, pode-se falar do mal, da dor, de tudo aquilo que sai da normalidade. Mas, não, agora a preocupação é não traumatizar as crianças e enquadrá-las em uma visão de mundo que corresponda ao que se considera correto e que se pretende normal. Dessa forma, revelam-se outras formas de pensar, ver e sentir. E se limita o alcance aos livros, como se esses tivessem que ser espelhos de virtude e não um lugar em que as pessoas reconheçam sua própria humanidade.

Dessa maneira, a sociedade passa de um mundo em que tudo estava brutalmente à vista a uma intimidade que se mostra terna, atenta e, sem dúvida, acobertadora. (5)

Porém, as pessoas precisam entrar no bosque para crescer, precisam dar de cara com o lobo e saber que podem vencê-lo, precisam saber que não estão sozinhas e que há outras pessoas que compartilham suas preocupações.

 

As provas serão mortais, como as provas dos contos, contudo, teremos que enfrentá-las em nosso foro interno para saber que podemos ser heróis no cotidiano, que podemos levar nossas vidas com valentia. Sem nos guiar pelas formalidades que estabelecem pautas de vida, variando de cultura a cultura, de religião a religião, de uma época para outra, mas nos arraigando em um poço de humanidade compreensiva. Todos nós queremos ser felizes e temos que o fazer respeitando os desejos de quem está ao nosso lado, assumindo nossa própria responsabilidade individual e o fato de que a pessoa ao lado possa não pensar como nós, porém, respeitando nela nosso próprio desejo de felicidade. (6)

A criança sente medo do lobo e, no entanto, tem uma atração irresistível por ele. No meu livro favorito de infância, havia um lobo terrível. Quando meus pais liam o conto, eu gritava e lhes pedia para fecharem o livro, mas, logo me aproximava e o abria na página do lobo, pouco a pouco, para fechá-la logo e repentinamente, e depois tornar a abri-la.

Nesse conto (7), uma avó se encontrava com o lobo em meio ao bosque no final da tarde. O lobo queria comê-la, claro, mas a avó o convencia a esperar pela noite e visitar sua casa, onde ela lhe daria algo bem melhor do que sua pele, lhe entregaria uma de suas três netas: Barricadinha, Dulcineia e Suavezinha. Quando o lobo chegava na sua casa à noite para exigir o prometido, a avó respondia: sim, sim, agora vovó está bem barricadinha em casa. Sim, sim, vovó acaba de apoiar sua cabeça no travesseiro mais suavezinho. Sim, sim, agora a vovó está entrando no mais doce sonho.

E o lobo ficava ali. Enganado, esperando em meio à noite. Enquanto a avó se abandonava tranquila, no mais obscuro bosque, aos mais luminosos sonhos.

Na realidade, a infância – nos dias de hoje, de modo geral – tem diante de si a melhor das oportunidades: desejada, cuidada e mimada pela família, tem como base a segurança protegida, a partir da qual pode se lançar para descobrir o mundo, enfrentar o lobo.

Ninguém, por meio da censura, tem o direito de privar as crianças dessa oportunidade única de crescer, tornando-se uma pessoa completa, consciente dos perigos, mas pronta para expressar sua própria natureza, sem preconceitos, e enfrentar o medo, o risco, quando as circunstâncias exigirem. Que trate de defender o frágil, de se atrever a manifestar sua identidade e de descobrir esse mundo prodigioso em que viemos parar.

(1) Mundo cruel, Ellen Duthie e Daniela Martagón, Boitatá, 2017.

(2) Still the Mind, Alan Watts, New World Library, 2000.

(3) El cerebro de Buda, Rick Hanson y Richard Mendius, Milrazones, 2011.

(4) L’enfant et la vie familiale sous l’ancien régime, Philippe Ariès, Plon, Paris, 1960.

(5) Em poucas centenas de palavras, acabo de apresentar um passeio tremendamente amplo e complexo, ainda que circunscrito no âmbito europeu. Que esses dados sirvam de ponto de partida para refletir sobre a censura e a relação entre adultos e infância.

(6) Sobre este tema recomendo ler as reflexões de Beatriz Sanjuán em Érase una voz. El primer libro del bebé [Era uma voz. O primeiro livro do bebê], que será publicado pela Ed. Livros da Matriz em 2018.

(7) Tvardushka, Mekushka i Sladushka [Barricadinha, Suavezinha e Dulcineia], edição original búlgara, ilustrada por Gencho Denchev, Editorial Sofia.

Arianna Squilloni

Arianna Squilloni nasceu na Itália, onde estudou Filologia Latina e Grega e especializou-se em Edição e Gestão Editorial. Desde 2002, mora em Barcelona, na Espanha. Trabalhou na Thule Ediciones e colaborou com várias outras casas editoriais, até que em 2008 abriu a A buen paso, dedicada a livros muito ilustrados para crianças dos mais variados gêneros.

Também colabora com revistas especializadas, ministra cursos e participa assiduamente de palestras e debates; faz parte do Círculo Hexágono(1), e, às vezes, escreve. Seguem alguns de seus títulos, todos ainda inéditos no Brasil: En casa de mis abuelos [Na casa dos meus avós], Ekaré, 2011; Martín, de grumete a capitán [Martín, o grumete capitão] Thule Ediciones, 2013; Un mar de mundos [Um mar de mundos], Thule Ediciones, 2014; El misterio del diente [O mistério do dente], Libre Albedrío, 2016 (menção honrosa no Primeiro Prêmio Iberoamericano de Livros Informativos para Crianças); L’estate e tutto il resto [O verão e todo o resto], Topipittori, 2016; El verano de John Silver [O verão de John Silver], Milrazones, 2017; além do ensaio teórico En el laberinto de la palabra, una guía de viaje [No labirinto da palavra, um guia de viagem], sobre a palavra e sua importância no desenvolvimento da pessoa. Publicado pelo Círculo Hexágono, Pantalia, em 2014, o texto será lançado no Brasil pela Editora Livros da Matriz em breve.

1.O Círculo Hexágono é uma iniciativa de estudo e debate sobre temas relativos à literatura infantil e juvenil.

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