Antes de "ler" uma imagem, pense nisso (Parte 1)
por Ana G. Lartitegui
tradução de Dani Gutfreund
Frequentemente escuto e leio argumentos a favor da ideia de que a imagem é algo como a linguagem, onde existem códigos icônicos e normas de funcionamento que devemos integrar e decifrar para poder “ler” imagens. E, ao que parece, a cultura do século XX fez de nós, os terráqueos, ávidos consumidores de mensagens visuais. Alguns tratados teóricos sobre design, arte e comunicação visual nos ajudam a entender como funciona a semiótica visual; como a compreensão por meio das regras da representação se faz possível na articulação com gramáticas e sintaxes*. Essas leituras são um bom começo, porém, acredite em mim: mais além de todas essas descrições existe um mundo insondável para ser explorado. O universo artístico é inesgotável e irredutível. Por isso, antes que se ponham a procurar o que há para “ler” em uma imagem, pensem no que vou lhes dizer:
Mitsumasa Anno, O alfabeto de Anno, perspectiva impossível (letra R), Bodley Head, 1974
Para começar, digamos que as imagens dialogam com nossa psique de um modo diferente daquele que acontece com uma mensagem feita de palavras. O âmbito visual não opera dentro de um sistema digital (as letras são dígitos codificados) e sim dentro de um sistema analógico (o signo visual representa modelos da realidade, é semelhante ao visível, mimético). Portanto, ainda que abstrata, uma imagem apela a estruturas mentais relacionadas com o que vemos.
Isso dá lugar a um fato fundamental: o olho capta o que vê de modo global, estruturando automaticamente os estímulos (algo que aprendemos a fazer nos primeiros meses de vida), criando, portanto, um “campo visual”. Esse modo de ver as coisas é o resultado de uma visão seletiva e organizadora, uma visão inteligente que privilegia alguns detalhes do que vê, dispensando outros para ser operacional. Portanto, nosso campo visual determina-se por leis da percepção que basicamente brotam da fisiologia do nosso olho, a qual condiciona que dominemos, sobretudo, o centro de um campo, já que possuímos um tipo de visão focalizada e focalizadora.
Tomi Ungerer, Onde está o meu sapato? (detalhe da quarta capa), Kalandraka, 2020
Por outro lado, nosso olho, e, consequentemente, nossa compreensão, abre caminho calibrando os contrastes de luz, sombra e cor, interpretando depois as formas que detecta: limites, linhas, contornos, figura e fundo. Todas as operações que nos conduziram até a capacidade visual que temos agora se automatizaram quando nossa consciência ainda não estava desenvolvida e, por isso, não conseguimos nos lembrar do esforço intelectual que exige. Graças a ele estruturamos agora o que vemos de forma instintiva, de um só golpe. Esse esforço de então tem muito a ver com o trabalho artístico de compor uma imagem sobre a página em branco.
O ilustrador deve dedicar sua atenção ao fato de que, dependendo da organização de seu desenho, poderá contribuir para que o espectador veja rapidamente o que vê ou, ao contrário, para que alguns detalhes fiquem em segundo plano, inclusive, sendo “engolidos” em meio a outros. Porém, sobre os estratos e níveis de organização em uma ilustração, quem sabe falemos em outra ocasião. Agora, simplesmente, me interessa ressaltar que o pensamento visual abre caminho estruturando e, portanto, tende a ser sintético e globalizador antes de analítico. Assim o descreve o Grupo µ em seu Tratado do signo visual: “[…] a percepção visual é indissociável de uma atividade integradora. […] nosso sistema visual está programado para depreender semelhanças” (1993:56).
Suponho que a seleção natural tenha feito da gente uma espécie diurna dotada de uma visão muito desenvolvida e eficaz graças a esses processos automáticos. Por isso, o pensamento visual tem um nível de automatização superior ao pensamento verbal, o que implica que sintetizamos o que se põe à nossa frente de um modo global, como processo de campo. Captamos a cena geral antes do detalhe, daí o poder hipnótico da imagem.
Para treinar os olhos dos pequenos, sobretudo, resgatar a mente de seus automatismos, alguns livros para crianças se esforçam para estimular a tomada de consciência com jogos ópticos surpreendentes. Autores como Tomi Ungerer, Ann Jonas, Mitsumasa Anno, Norman Messenger, Betty Bone, Anne Bertier e Olivier Douzou, entre muitos outros, criaram magníficas propostas inspirando-se em uma tradição de séculos, herdada do interesse dos artistas pelo ilusionismo como parte dessa reflexão metapictórica que se interroga sobre as regras da representação e a ideia de mimeses, precisamente.
Olivier Douzou, Formiga, Rouergue jeunesse, 2012
Assim, essas contribuições criativas, as quais geralmente consistem em imagens sem palavras, não apenas servem para que nos perguntemos por que vemos o que vemos (o que já é muito), mas vêm somar-se a uma corrente de pensamento mais ampla e universal: a que rompe com a forma de ver as coisas para questionar outros níveis de percepção. De certo modo, esses livros brincam com os Princípios da Visualização formulados pela Teoria da Gestalt. Mas, embora seja certo que esses princípios tenham contribuído para impulsionar o auge da comunicação visual nos âmbitos midiáticos regidos por uma total aceleração da habilidade de captar olhares, os livros a que nos referimos aqui contribuem com o jogo das ideias e, por isso, com a geração de pensamento crítico. É uma diferença sutil, porém decisiva, porque são obras inteligentes que despertam nosso ser criativo, que ativam processos racionais contra os automatismos. Sem dúvida, em algumas delas, apreciamos as regras que regem a posta em imagem descritas pela Gestalt. E, ainda assim, isso não é tudo, ou é?
(Continuará)
* títulos muito importantes, de uso comum em escolas de Arte e Design, como, A sintaxe da linguagem visual, de Donis A. Dondis (1973) ou Gramática visual, de Christian Leborg (2004); e em inglês, Reading images. The Grammar of Visual Design, de G. Eres y Theo van Leeuwen (1996).
Parte 2
Situar-se diante de um campo de visão é como entrar em um campo de batalha em que muitos estímulos distintos vão bombardear ao mesmo tempo sua capacidade de percepção. Para se adaptar a ele e vencer o caos inicial, seu sentido de visão faz seleções, estabelecendo hierarquias e estruturando o que vê. No final das contas, captamos apenas o que podemos tornar nosso, aquilo que podemos “digerir”. Os estímulos disformes não serão percebidos ou compreendidos. Somos seres inteligentes e isso significa perceber e outorgar sentido. Se algo não é compreendido ou não se “formata” em nosso cérebro, simplesmente desvanece. Um ilustrador precisa ter isso sempre presente.
Basicamente, o ofício de artista consiste em capturar imagens e orientá-las dentro de algum conjunto de regras de tal modo que sejam não apenas compreensíveis, mas também evocadoras. Mas, este trabalho de posta em imagem é possível graças ao fato de que, como espécie humana, compartilhamos um modo universal de estruturar o que vemos. A eficácia gráfica, pois, parte de um hábil manejo desses princípios perceptivos daquilo visto que mencionamos ao falar da Gestalt, já que “[…]cada forma possui um capital de energia, que é sua capacidade de atrair o olhar sobre si mesma.” (Grupo µ, 1993: 202).
© Carlos Rubio, A juego lento, Mar Benegas, Litera Libros, 2016
Portanto, qualquer esforço que façamos para esclarecer uma imagem se reverte em eficácia comunicativa. Um exemplo que resume muito bem essa ideia são as ilustrações tipográficas de Carlos Rubio para o atividário de Mar Benegas A juego lento [Em jogo lento]. Concebido como caderno de exercícios para “cozinhar” poesia, suas ilustrações são composições protagonizadas pela letra “P” de “poesia”. A página dupla que mostramos aqui é a abertura do segundo capítulo: “Para ser poeta”. Brincando com o valor visual das letras (sementes das palavras), Carlos Rubio consegue encontrar uma estrutura sensível que carrega ressonâncias muito fortes em vários níveis de diálogo: por um lado, aquilo que evocam imagens e texto, por outro, o que surge das próprias letras com elas mesmas pela situação ambígua para a qual aqui são convocadas.
É certo que aproveitando os processos mentais que nos são comuns – sejam de natureza fisiológica ou transmitidos culturalmente – estabelecemos certas convenções que podem ser confundidas com códigos. Essas convenções integram-se no leitor-espectador de um modo mais ou menos intuitivo graças ao que provém da lógica dos perceptos* ou conceitos pré-linguísticos. Por exemplo, pensemos no desenho esquemático mais simples de uma flecha: simboliza a penetração em um espaço devido ao impulso de uma força projetiva. A haste da flecha desenha uma trajetória, enquanto a ponta com sua forma angular evoca uma incisão e assinala a capacidade de penetração. Todas essas qualidades gráficas provêm do percepto “direcionalidade”. Graças a essa conformidade com o percepto, o ícone “flecha” adquire um sentido simbólico; inclusive podemos tipificar seu significado em âmbitos mais restritivos dentro de sistemas com melhor codificação, como é o caso da sinalização (por exemplo, os sinais de trânsito). E, uma vez tipificado, nada impede que um artista visual como Carlos Rubio se permita recorrer ao ícone de composições mais complexas de interpretar, como o que vemos de novo no interior de A juego lento, em que, desta vez, ao contrário do que acontecia antes, os desenhos serão letras.
Portanto, boa parte das regras e normas de composição que aprendemos nas escolas de arte se fundamentam nas bases perceptivas comuns e delas extraímos seu alcance comunicativo. Por exemplo, o ordenamento das cores e suas relações são estudados no círculo cromático, o qual se conecta com a circularidade dinâmica e a complementaridade que se desprende dela. Outro exemplo: a geometria das proporções brota do sentido do equilíbrio e leis de concordância. De fato, um bom exercício para o estudante de arte seria descobrir essa implicação das leis da natureza (e dos perceptos com os quais as interpretamos) nas estruturas que ordenam e orientam nossas composições, já que também as regras normativas na arte são reflexos da realidade dos fenômenos, ou seja, também são miméticas.
Quando uma imagem consegue sintonizar com a ordem essencial do fenômeno que deseja expressar, ela pode captar um grande poder de ressonância. É o que acontece com a ilustração tipográfica em “Para ser poeta”. Consegue entrecruzar várias magnitudes gráficas, como a clonagem massiva de sinais gráficos por fileiras, como se fosse um desfile militar em contraste com a singularidade da letra “P” branca orientada no sentido contrário, à contracorrente. As qualidades dos sinais pretos: a cor, a simetria especular (um “P” ao contrário) e o avanço adverso (da direita à esquerda) sugerem um significado desfavorável, enquanto o “P” branco é percebido como correto, lutando para abrir caminho, dando a ideia de uma defesa da poesia como algo libertador.
Como vimos, toda composição visual é uma trama complexa de relações em que cada detalhe, por mais minúsculo que seja, conta sua história, o que está em relação com um dos princípios básicos da percepção: nenhum acontecimento pode ser captado isoladamente. Qualquer imagem, como dizíamos, é um todo orgânico que sintetizamos de modo global, como processo de campo. Porém , é mais importante considerar que essa síntese se realiza no espectador e pelo espectador, de modo que é o produto de uma adequação pessoal mediada pelo que conseguimos captar do que vemos, ou seja, o que aprendemos a perceber e conservamos na memória. Portanto, toda contemplação é, em si mesma, um ato de rememoração, já que a mente inevitavelmente vai recorrer ao que recorda para assimilar as ideias. Também o recíproco é verdadeiro: a memória precisa que aquilo que percebe adquira forma (seja visual ou não) para que possa gravar memórias.
Neste ponto, teria que lembrar que este artigo nasce para debater a pertinência de considerar a comunicação visual e a arte como linguagem e, quem sabe, ainda não tenhamos sido capazes de aportar uma argumentação satisfatória. Portanto, deixo em suspenso duas perguntas: Que tipo de comunicação estabelece a imagem? Quais são seus limites e quais suas potencialidades?
(continuará)
* Um percepto é um conceito vinculado ao modo como estruturamos o sensorial e a realidade perceptível e aparente sobre a qual atuamos. Tem certo grau de abstração, porém pede uma situação operacional. Percepto é, por exemplo, a ideia de semelhança, proximidade, campo, limite, contorno, equilíbrio, contraste etc. É o cimento de nosso pensamento intelectual e dita, assim, as dinâmicas na hora de organizar o espaço em nossas criações artísticas.
Referências bibliográficas:
Grupo µ (1993) Tratado del signo visual. Madrid, Cátedra.
Ana G. Lartitegui
Nos últimos anos, concentrei meu afã investigador nas edições de não ficção. Meu ensaio Alfabeto del libro de conocimientos. Paradigmas de una nueva era (col. « Cuadernos Hexágono » nº 6, 2018) [Alfabeto do livro de conhecimentos. Paradigmas de uma nova era] é resultado disso. Mas, tudo começou no ano de 1989, quando publiquei minhas primeiras ilustrações para um livrinho de bolso. Boa parte da minha obra como ilustradora é em parceria com o escritor Sergio Lairla e destaco El libro de la suerte (A Buen Paso, 2014), Premio Euskadi de Ilustración 2015, e Mejor Libro Juvenil 2016, en Banco del Libro de Venezuela, e La carta de la señora González, reeditada pela A Buen paso, em 2019 (EO Fondo de Cultura Económica, 2000), que recebeu o Premio Mejor Libro en la FML 2000. Desde 2009 sou professora do Máster Propio de la Universidad de Zaragoza “Leituras, livros e leitores infantis e juvenis”, atualmente encarregada da unidade “Livro de não ficção’.
Também com Sergio Lairla, promovo atividades de formação e promoção de LIJ na Pantalia Proyectos Culturales (www.pantalia.es). Desde 2008, coordeno o grupo de estudos Círculo Hexágono e sua coleção de ensaios breves sobre literatura e infância, os “Cuadernos Hexágono”, que ganhou reforço com a recém-lançada coleção “Biblioteca LIJera”. Por último, desde 2012 tenho tido a honra de dirigir a edição espanhola do Observatorio del álbum y de las literaturas gráficas Fuera [de] Margen, também publicado pela Pantalia.